Para mim, o grande papel da arte continua sendo o da expressão pessoal, a possibilidade de cada um de descobrir caminhos, de descobrir a si mesmo através de uma obra de arte. A arte como parte desse misterioso caminho em direção a si mesmo, como forma de autodescoberta.
Para isso, procuro trabalhar sozinho, tendo total controle do processo criativo, da concepção à realização.
Assim, o ideal seria que eu fosse um escritor. Com poucos recursos, trancado num quarto, sozinho, eu poderia desenvolver meu processo criativo através da literatura. Mas acontece que não gosto muito da palavra. Eu até a uso – como estou fazendo agora – mas confesso que não gosto muito da palavra. Acho que a palavra é traiçoeira, ela engana, é ardilosa. Gosto do silêncio.
Poderia, então, me expressar através da música. Mas, como disse, gosto do silêncio. Ouço muito pouco música, não consigo me concentrar, acabo me dispersando.
Poderia ser um artista plástico, que trabalhasse com pintura, escultura, algo assim. Mas acontece que tenho pouquíssima habilidade manual. Sou um desastre com desenho ou coisas do tipo.
Poderia me expressar pela arquitetura. Mas é algo muito trabalhoso, que em geral envolve altos custos, e a arquitetura é sempre calcada em dar uso – não gosto de coisas úteis.
A fotografia. Mas eu preciso do tempo. Gosto do silêncio e do tempo, do escorrer do tempo.
Ai meu deus, o que posso fazer então? Que cara chato que não sabe/gosta de fazer nada!!!!!…………….
Daí então vem o cinema. Fazer um filme.
Mas a ideia que se tem de um filme é o conjunto de todas as artes. Dá trabalho, precisa de grana, precisa de muita gente, precisa de palavra (roteiro), de música, de pintura, fotografia, arquitetura, tudo isso. E ainda precisa de administração, economia, etc. É muito complexo ser cineasta.
Ainda é algo muito midiático, você precisa gostar da fama, do sucesso e da mídia, que eu acho tudo isso um saco. Uma tolice.
Mas talvez haja um lugar estranho que eu posso ocupar!
É esse lugar possível com as câmeras digitais, os imacs e coisas do tipo dessa nova tecnologia digital que é muito mais acessível que a tecnologia analógica.
Você não precisa mais saber filmar, fotografar, etc, para fazer um filme.
Basta ter vontade, ser sincero, basta saber se colocar num filme.
É isso o que desejo.
Nada mais.
Na verdade, todo esse tipo de justificativa eu estou inventando agora.
Eu simplesmente encontrei o cinema porque nunca tive muito saco para ler e nunca gostei de ouvir música. Sempre gostei de fazer tudo sozinho porque nunca tive amigos ou pessoas que quisessem dividir coisas comigo.
Então, dentro do meu quarto, descobri que, mesmo assim, eu poderia fazer coisas que me interessassem, em busca desse caminho misterioso do autoconhecimento.
Descobri que, mesmo que ninguém se interessasse pelo meu trabalho, eu poderia continuar criando mesmo assim, e esse gesto poderia reverberar, mesmo que ninguém assistisse ou se importasse.
Mesmo assim, eu continuei produzindo, porque não me importava com a repercussão de minhas obras, mas simplesmente o processo do autoconhecimento.
Eu fui amadurecendo a partir desses filmes, pois fui me descobrindo, me conhecendo melhor. Assim, meus filmes foram amadurecendo. Eu evidentemente fui vivendo e vivenciando outras experiências que foram incorporadas nos meus filmes.
Hoje vejo que essas obras eram (são) garrafas jogadas ao mar. Foram lançadas como um ato de desespero. Eu não sabia se iriam chegar em alguém ou como iriam recebê-las caso chegassem. Mas não me importava com isso, eu me concentrava apenas nesse gesto de jogar essa garrafa. Que esse gesto fosse sincero. Eu procurava me concentrar para fazer o meu melhor, e deixar por conta das ondas levar essas garrafas para o mundo.
De uma forma misteriosa e que ainda hoje não compreendo bem, percebo que elas estão a cada dia que passa chegando a mais pessoas.
Agora, preciso me concentrar em continuar jogando mais garrafas. Em não recuar. Em não desistir. Em persistir nesse gesto vão, esse gesto que não tem uso, esse gesto ingênuo, esse gesto romântico desesperado gratuito obtuso. Preciso continuar fracassando cada vez melhor. É esse talvez o único espaço que ainda resta na minha vida em que posso fracassar com orgulho, em que tenho real liberdade para poder me expressar da forma como for. Em que posso colocar toda a minha vontade de silêncio, de angústia, desse tempo de longa duração, de observar os espaços, de mergulhar no interior de mim, de olhar para a casa, de mostrar toda a potência e toda a doença, toda a minha fragilidade e a minha força, de fazer pequenos exercícios, ensaios visuais. Enfim, um espaço em que eu posso ser eu mesmo, nada mais além disso, que eu não preciso exercer nenhum papel, vestir nenhuma roupa ou máscara. Não quero gritar, não tenho um inconformismo profundo, quero apenas investigar o silêncio, o tempo e o espaço. Mas não quero fazer exercícios formais, manuais de estética. Quero colocar a mim mesmo nesses filmes, quero falar de mim, quero falar do meu desejo em me expressar e ao mesmo tempo do meu desencanto com o mundo e com as coisas. De como tudo é tão pequeno mas ainda assim é algo que existe e que irradia. Ou seja, não sei muito bem o que quero e o que sou, exatamente por isso parto para fazer esses filmes, que são um caminho, um estágio do autoconhecimento.
Esses filmes são cartas. Escritas para quem? Para você. Para mim. Não sei. Não sei mais o que é uma carta. Se é um desabafo. Se precisa ter alguma mensagem. Se precisa ter um destinatário. Não sei bem. Me preocupo apenas com o ato dessa escritura. Algo prosaico, que não tem importância, algo de pequenos momentos. Eu gostaria de te dizer eu te amo mas não posso. Não consigo, não me sinto bem, me sinto meio patético falando isso, entende? às vezes ensaio em frente ao espelho, mas não consigo, desisto, me sinto mal. queria poder sair essa noite e te mostrar todo o meu amor, mas tenho medo de você rir de mim. tudo é muito frágil, esse sentimento tão grande que tenho dentro de mim, que às vezes acho que vai transbordar e me matar sufocado! por isso, ainda é preciso domar o verbo, domar os instintos. a empolgação leva ao erro. o ceará é assim. tenho medo de me afogar. é preciso certa cautela para vivermos a intensidade. não sei muito bem onde vou chegar com essas cartas. agora já é tarde, não tenho mais energia para prosseguir, não consigo mais. é preciso começar. adeus. eut