Esta série das CARTAS DO CEARÁ 2016 marca uma profunda diferença em relação à série anterior. Enquanto as quatro cartas de 2015 eram todas centradas na solidão do meu apartamento claustrofóbico, nestas cinco cartas de 2016 a busca é o encontro com o mundo e com as pessoas.
As cartas giram em torno do tema da amizade, e de breves mas intensos momentos de encontro em que a potência é a da afetividade. Cada carta é passada em um diferente estado do Nordeste do Brasil. Se as cartas são “do” Ceará, é porque existe esse passo entre a filmagem e a edição. São todas elas abraços vindos do Ceará que celebram a possibilidade da existência desses pequenos momentos fugazes de felicidade. Uma delas (a #04) é do Ceará, o que marca uma espécie de retorno cíclico, um sinal discreto de pertencimento.
A primeira carta marca um encontro com o Coletivo CUAL, de Salvador, num final de semana memorável em que fui para Salvador trocar experiências com esse coletivo: eu, o realizador solitário que justamente estuda a amizade e a coletividade no cinema brasileiro contemporâneo. Nesse encontro, vi alguns dos filmes do CUAL, e o CUAL viu alguns dos meus filmes, e conversamos sobre essas experiências. Depois, brindamos a possibilidade de existirmos e de estarmos juntos.
A segunda carta mostra uma festa improvisada em Olinda, Pernambuco, em que estão presentes na sua maioria professores e alunos do curso de audiovisual da UFPE. Uma mesa de sinuca a céu aberto, onde importa menos acertar a bola no buraco do que estar juntos. Para mim em especial, a possibilidade de encontro entre professores e alunos acende uma esperança, especialmente por ela acontecer em Pernambuco.
A terceira carta apresenta dois breves momentos no fim da madrugada na Praia de São Miguel do Gostoso (RN), na noite de encerramento da bela mostra de cinema organizada por Eugenio Puppo e Matheus Sundfeld. O plano final, em que um conjunto de pessoas ajuda a tirar um carro atolado na areia, me toca especialmente. E, claro, dado o meu papel solitário diante disso.
A quarta carta é, como dizia, passada em Fortaleza, e acompanha uma palestra ministrada pelo professor Yuri Firmeza na pracinha de Sapiranga, ao ar livre. Depois, o professor e seus alunos tomam uma “saideira” no famoso bar “Ferro Velho”, no Benfica. Essa carta, de várias maneiras, é um olhar meu para a beleza do gesto de Yuri na cidade e no curso de cinema da UFC, onde damos aulas: seu despojamento e liberdade no ensino, sua relação horizontal com os alunos, sua relação provocativa especialmente com a representação do sexo, enfim, sua relação umbilical entre arte e vida. Carta que apresento hoje com uma certa distância, em relação à perda de um romantismo que tenho da cidade, da universidade, e das próprias pessoas ali envolvidas. Não deixa de ser uma despedida, visto que passei a morar por um tempo em outra cidade. Mas esses momentos de afeto, ainda que distantes, permanecem em mim.
A quinta carta é passada em Teresina (PI), com o convite que recebi para um conjunto de palestras na cidade pelo professor Wanderson Lima. Essa carta apresenta três facetas de Wanderson: o professor (o trabalho), o irmão mais velho (a família), o goleiro (o lazer). Os três se complementam, e são na verdade um só. Após o primeiro momento, os dois seguintes vão oferecer um outro lado do “professor acadêmico”: são momentos de intimidade que revelam sua terceira paixão ao lado do cinema e da literatura – o futebol.
Nestas cartas, o que há em comum, talvez seja um desejo do encontro, uma leveza de breves momentos de epifania. Nesses momentos talvez eu tenha sido feliz e não me tenha percebido disso, apenas quando revi as imagens. Em comum, revelam minha amizade, mesmo que temporária ou passageira, com alguns artistas do Nordeste, pois, em comum, todos estão envolvidos com o cinema e com o processo de criação.
Como os meus típicos trabalhos, em alguns momentos nessa carta é possível, ainda, ver uma certa distância que marca minha presença em relação a eles. O que há de afeto e de distância “entre mim e eles”. O que me faz sentir parte disso e o meu olhar, ou ainda, a minha solidão. Aquilo que me faz. Ou seja, essas cartas são a forma possível de dizer a eles (a mim mesmo, ou ao mundo) que os amo. É a minha declaração de amor possível.
Contracampo solar (potência dos afetos, resgate do coletivismo) em relação às sombrias quatro cartas do ano anterior. Na verdade, mais do que contracampo, é como se essas séries se complementassem, dialeticamente.
Continuo escrevendo e filmando porque ainda tenho essa vã esperança que essa brisa morna de afeto possa nos transformar.